Um conto moderno de RH


Carlinhos é um programador mediano, morador da cidade de Sampa. Se formou em uma universidade longe de estar na lista das melhores do país, estado ou da cidade. Foi contratado pela empresa ACME.com como trainee. No começo, seus superiores o achavam bastante fraco, com muitas falhas de formação e pouca prática de desenvolvimento de software. Com o tempo, e graças a uma boa ajuda dos colegas e muita boa vontade e esforço, Carlinhos foi evoluindo e se tornando importante para o projeto.

Após um ano de empresa, Carlinhos queria mudar de cargo, afinal tinha 26 anos e ainda era trainee. O RH aceitou a requisição e Carlinhos foi promovido a Analista Júnior. Mas o salário continuou o mesmo, extremamente defasado diga-se de passagem. Depois de mais alguns meses, foi pleitear um aumento. A oferta do RH? 100 reais. Bastante contrariado, avisou que iria sair de férias e procurar emprego. Começou a enviar CVs para varias consultorias. Alguns dias depois, recebeu uma ligação, recebendo uma proposta para trabalhar na empresa ACME.com! Por um salário bastante superior ao anterior!! Esta história é real apesar dos nomes fictícios. Ouvi de uma fonte confiável.

Alguns pontos merecem destaque nesta história. Na pressa de conseguir enviar nomes para a empresa, a consultoria nem ao menos se deu o trabalho de ler de fato o CV do Carlinhos, onde com certeza estava escrito que ele trabalhava na empresa ACME.com. E daí pergunto: se nem isso eles olharam, será que eles olharam de fato o CV do Carlinhos?

Hoje em dia, o mundo da computação vive a ditadura das palavras chaves: EJB, J2EE, JBOSS, C, C++, PHP, ASP, e muitos outros. Boa parte da seleção de profissionais hoje em dia se faz apenas e tão somente a partir destas palavras, sem levar em conta outros aspectos extremamente importantes como experiência, conhecimento de fundamentos de computação, arquitetura, facilidade de aprendizado de novas tecnologias, interesse, comprometimento. Estes requisitos em geral são completamente desprezados. E isto piora quando se sabe que em geral as pessoas que recrutam nestas consultorias não são profissionais de tecnologia e não fazem idéia do que estão falando.

Há alguns meses atrás, recebi dois telefonemas de consultorias oferencedo emprego. Na primeira, a pessoa me perguntou se eu tinha experiência em Java e VB. Respondi que era muito experiente em Java, mas que VB tinha apenas brincado, mas que isso não era problema porque aprenderia fácil. A moça respondeu que tinha que ser extremamente experiente em ambos e me descartou. Não que eu tivesse interesse no trabalho afinal já estava trabalhando e feliz, mas um papo de 15 minutos não deveria ser eliminatório. No segundo telefonema, a moça me fez algumas perguntas sobre conhecimentos em tecnologias específicas: basicamente, uma coleção de palavras chaves que eu tinha que simplesmente dizer se conhecia ou não. A dita cuja tinha dificuldade pra pronunciar algumas das palavras, como middleware por exemplo. Claramente não era a primeira vez que lia a lista. Nunca mais me ligaram.

Quando se sabe o quão criterioso e focado em conhecimentos de teoria, segurança, arquitetura e outros conceitos vitais são os processos seletivos de empresas como Google ou Microsoft ou Apple, eu fico um tanto quanto desanimado quando eu vejo a forma como os processos são nivelados por baixo no Brasil. O profissional de tecnologia é muitas vezes considerado como sendo a peça mais substituível em um processo de desenvolvimento de software, e a qualidade do produto final fica a cargo de camadas e mais camadas de gerenciamento e metodologias que muitas vezes garantem qualidade apenas no papel. Aliás, em geral qualidade é algo que serve apenas para vender, ficar bonito na foto.